segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Diálogos entre bioética, religião, morte e fim da vida




As questões da bioética, especialmente no tocante a decisões que resultam em manutenção ou interrupção da vida humana e a limites biomédicos relacionados à melhoria da saúde, abrem espaço para argumentos de fundo religioso contra e a favor dos procedimentos. A divergência de opiniões, fundamentadas em concepções diferentes sobre início da vida, limites das ciências, direitos humanos, papel do Estado e autonomia em decisões que dizem respeito ao corpo e vida do indivíduo, não é algo negativo, visto que, segundo Pessini (2008), o “diálogo com as diferentes tradições de pensamento, sejam elas de vertente secular ou religiosa,” reflete a diversidade da esfera pública e contribui para aprimorar a Bioética.
Nesse sentido, é pertinente partir das concepções que fundamentam posturas pessoais e públicas no tocante às questões de Bioética, focar as situações concretas, vistas por diferentes prismas, e oferecer elementos para o necessário discernimento, visto que o bem individual e coletivo do ser humano está no centro de toda a reflexão ética. Faremos este percurso pontuando questões relacionadas ao prolongamento artificial da vida e/ou intervenções para abreviar o sofrimento do doente terminal, como a eutanásia.

Vida e morte como eixo da discussão sobre a eutanásia
Situações que colocam em pauta a morte do ser humano, como o caso da eutanásia, implicam necessariamente uma reflexão sobre quando começa e quando termina a vida humana, assim como o poder da medicina sobre sua manutenção ou interrupção. Anteriormente, um indivíduo era considerado morto quando seu corpo apresentava ausência de batimentos cardíacos e de respiração. Atualmente, visto que o ser humano à beira da morte pode ter coração e pulmão estimulados artificialmente, as ciências médicas relacionam a morte à ausência de estímulos elétricos no encéfalo durante, pelo menos, um período de 24 horas ininterruptas.
Na tradição da filosofia, morte é ausência de consciência: se o ser humano não está consciente da sua existência, não pode ser considerado vivo. Esta afirmação finca raízes na filosofia cartesiana, que concebe o ser humano a partir da razão – “penso, logo existo” –, mas aponta um primeiro questionamento sobre o tênue limite entre a vida e a morte: não ter domínio das faculdades da consciência, em situações terminais, significa estar vivo, ainda que as funções mecânicas do corpo continuem em curso? Ou, como bem sintetizado por Sousa e Galuppo , se a vida resumidamente é o contínuo metabolismo de um dado organismo (ponto de vista biomédico), a evolução da mente em direção a outro estágio (filosofia) ou o retorno da alma à divindade que a gerou (tradições religiosas), o que vem a ser a “vida quando cessa” ou, melhor dizendo, “a morte”?
Do ponto de vista religioso – e focando especificamente o cristianismo –, o homem não tem direito a interromper sua vida, nem a de outras pessoas, porque a origem da vida é divina. Como a vida é dom de Deus, não cabe ao homem deliberar sobre sua continuidade ou finitude. O ser humano provém de Deus e a ele retornará ao final da sua jornada terrestre – e a decisão entre início e fim desse percurso está para além da compreensão humana, situando-se nos domínios do Transcendente. Mesmo para tradições religiosas que acreditam em transmigração da alma ou reencarnação, a morte não é prerrogativa humana: cabe à divindade decidir quando o ser humano deve encerrar sua trajetória na terra.
Também devem ser consideradas as implicações jurídicas destes procedimentos. O biodireito, ramo do Direito que se ocupa dos ordenamentos jurídicos relativos ao bem da vida na conduta humana , considera as implicações jurídicas das decisões que envolvem questões de Bioética. Aborto e eutanásia são as questões mais conhecidas, mas o biodireito se estende a decisões sobre manipulação genética e pesquisas que supõem intervenção no organismo humano, entre outras. No Brasil, a Constituição considera a vida um direito alienável, ou seja, nem a própria pessoa pode dispor ou abrir mão dela, assim como de sua integridade física, também um direito fundamental. Nesse sentido, a eutanásia, não sendo regulamentada pela lei, pode ser considerada crime contra a vida.
Estas questões, bastante teóricas, ganham dimensão de concretude na situação específica de terminalidade de um paciente. Aparecem o ponto de vista médico – não há sinais elétricos no encéfalo – e a concepção filosófica – a pessoa perdeu consciência de si mesma. E aí entram outras questões: se a família cultiva a pertença a uma tradição religiosa, aparece a fundamentação doutrinal sobre o poder humano de interromper a vida – já que sua origem e destinação é Deus. E se colocam também as questões jurídicas: a família tem o direito de escolher se o parente deve viver ou morrer, e a equipe médica será criminalizada caso tome os procedimentos devidos para que isso aconteça?

Religião, morte e fim da vida
A postura das religiões tem sido, tradicionalmente, a de reserva aos avanços científicos, bem como de resistência à laicização dos preceitos legais. A Igreja Católica tem manifestado inquietação a respeito de algumas características do mundo contemporâneo, dentre as quais “o vazio ético e o individualismo que reduzem a fundamentação dos valores a meros consensos sociais subjetivos” . Ou seja, há resistência em relação às mudanças na legislação e nas práticas que desconsideram os preceitos religiosos. A predominância do debate em torno de questões morais e religiosas neste segundo turno das eleições presidenciais – marcadamente aborto e união civil entre homossexuais – é uma evidência do quanto a dimensão religiosa mantém sua influência sobre os espaços sociais.
À parte o fundamentalismo religioso, que desconsidera a laicidade constitucional do Estado e mistura debate sobre direitos humanos com doutrina religiosa, as pontuações de fundo religioso questionam o risco do fundamentalismo científico, tendência que coloca na ciência a primazia de decisão sobre questões ligadas ao fim da vida. A ciência teria um fim nela mesma, e não nos benefícios que traria à humanidade. Esta postura traz o risco de se esvaziar a “unidade substancial humana” e “pôr em perigo sua especificidade antropológica” , ou seja, enxergar o ser humano apenas pelo prisma biofisiológico, sem considerar os aspectos culturais, metafísicos e religiosos, no enfrentamento de situações-limite da vida humana.
No caso de pacientes terminais, as situações geralmente se referem a casos de doença incurável, de sofrimento intenso e/ou de tratamento inútil, quando os recursos farmacológicos atuam no sentido de minimizar os sintomas, visto que não há possibilidade de cura. Nestes casos, são três as possibilidades:
• A eutanásia, também chamada benemortásia ou sanicídio, é a antecipação deliberada da morte de doentes terminais; geralmente é um procedimento indolor de supressão da vida;
• A ortotanásia, conhecida como eutanásia passiva ou paraeutanásia, consiste no auxílio médico ao processo natural da morte, quando o paciente ou sua família exigem a supressão dos medicamentos, meios artificias ou procedimentos necessários para a manutenção da vida do paciente;
• A distanásia, também chamada de obstinação terapêutica ou futilidade médica, se refere ao prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou do tratamento inútil para a doença; costuma implicar muito sofrimento, visto que os procedimentos terapêuticos são mais invasivos do que a própria doença.
Também se pode citar a mistanásia, ou eutanásia social, a morte miserável fora e antes da hora, como no caso do extermínio de pessoas tidas como defeituosas ou indesejáveis, conflitos de xenofobia, holocaustos ou, ainda, pela omissão médica em casos de insuficiência hospitalar em relação à demanda. Não é, entretanto, o foco deste texto.
Nas situações que envolvem vida e morte humanas, há que se levar em conta que os princípios da bioética – beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça –, assinados em 1978, nos Estados Unidos, e publicados pela Comissão Nacional para Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e Comportamental, delineiam a complexidade das situações onde o que está em jogo é a vida ou a morte de uma pessoa. Estes princípios questionam tanto as ciências biomédicas quanto a filosofia, a legislação e as religiões, porque dão foco ao que deve fundamentar as decisões no caso de optar pela vida ou pela morte. Para além das posturas doutrinais, das crenças pessoais ou dos conflitos de interesse numa dada situação, o que deve estar no centro é a vida humana e o bem da pessoa, em toda a sua complexidade. Portanto, decisões que incidem sobre ela nunca poderão ser simplistas.

Considerações finais
As situações extremas, que envolvem decisões sobre prolongar ou interromper a vida humana, costumam gerar discussões também extremas, pois envolvem crenças, interesses e fundamentos muitas vezes contraditórios, porque oriundos de diversas fontes ou baseados em diferentes pressupostos. Daí a importância de adotar uma postura dialógica, que considere, de forma respeitosa, os vários pontos de vista imbricados na situação. É pelo processo dialético que se poderão construir consensos.
Também é importante relacionar os fundamentos teóricos e institucionais com as pessoas e fatores específicos da situação em que se cogita optar pelo prolongamento ou pelo encerramento da vida do paciente. Questões médicas, filosóficas, religiosas e jurídicas terão maior ou menor peso de acordo com a trajetória de vida das pessoas envolvidas na decisão. E elas é que darão foco específico às considerações entre o limite que separa o prolongamento artificial da vida e o momento em que o ser humano, visto na sua totalidade, deixou realmente de existir.

Referências bibliográficas
BENTO, Luis Antonio. Bioética: desafios éticos no debate contemporâneo. São Paulo, Paulinas, 2008.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. INSTITUTO NACIONAL DE PASTORAL. A dignidade da vida humana e as biotecnologias. Brasília, Edições CNBB, 2006.
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília, Edições CNBB; São Paulo, Paulinas; Paulus, 2008.
JUNGES, José Roque. Desafios das biotecnologias à teologia moral. In TRANSFERETTI, José. ZACHARIAS, Ronaldo. Ser e viver. Bioética, biotecnologias e sexualidade. Aparecida/SP, Editora Santuário; São Paulo, Centro Universitário São Camilo, 2008.
PESSINI, Leo. Bioética: das origens aos desafios contemporâneos. In TRANSFERETTI, José. ZACHARIAS, Ronaldo. Ser e viver. Bioética, biotecnologias e sexualidade. Aparecida/SP, Editora Santuário; São Paulo, Centro Universitário São Camilo, 2008.
SOUSA, Paulo Roberto de. GALUPPO, Fernando Furlanetto. A morte, a bioética e o biodireito: uma abordagem panorâmica. In TRANSFERETTI, José. ZACHARIAS, Ronaldo. Ser e viver. Bioética, biotecnologias e sexualidade. Aparecida/SP, Editora Santuário; São Paulo, Centro Universitário São Camilo, 2008.

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